0 O Anão
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Pär Lagerkvist
Diário de um monstro e crónica de intrigas de uma sumptuosa corte italiana na Renascença, O Anão (1944) é um retrato exemplar da perversidade humana e uma exímia dissecação do mal.
Piccolino é um anão na corte de um poderoso príncipe, que espia, despreza e tortura os que o cercam. Mas, abandonado pela mãe à nascença e rejeitado pelo mundo devido à sua fealdade assustadora, o seu ódio ao ser humano é o reflexo desesperado da sua solidão. É por este emissário acometido por delírios de grandeza que assistimos a conspirações, a traições, à peste que assola a corte e a assassínios. É por ele, também, que vemos o que o protagonista se recusa a ver: a sua deformidade moral, e não a física, é a origem do mal que o rodeia, e a sua maldade faz dele uma criatura mesquinha e miserável.
Autor: Pär Lagerkvist
Editor: Antígona (2013)
Páginas: 178
Género: Romance/Clássico
Original: Dvärgen (1944)
Opinião
My rating: 5 of 5 stars
O Anão, Piccolino, é um indivíduo de moral distorcida, sem escrúpulos e, na verdade, sem qualquer problema com isso. Rancoroso, venenoso e vil, Piccolino crê pertencer a uma espécie diferente, mais antiga e mais distinta que a vulgar espécie humana, a qual ele observa crua e objectivamente, sem o cínico sentimentalismo social. E é aos seus diários, escritos num ambiente deliciosamente sombrio recriado na Itália renascentista, que Pär Lagerkvist nos permite aceder em O Anão.
Adorei esta criaturazinha crítica e egocêntrica. Terrível. Solitária. Intolerante. Maléfica. Capaz de ver a perfídia alheia e ignorando a sua, julgando duramente os pecados de quem o rodeia e justificando os seus com confiança. Piccolino vive para servir o seu príncipe - também ele um indivíduo de moral dúbia que, para permanecer isento de culpa directa, permite a Piccolino agir nas sombras e fazer, por assim dizer, o «trabalho sujo».
A crueza sociopata com que Piccolino escreve no seu diário é quase hipnótica - a forma como este sádico vibra com a guerra sanguinária, como se aborrece de morte com a paz; como descreve desapegadamente os horrores de que são vítimas os contaminados pela peste; como odeia a única mulher que poderia realmente ter amado… E como, tristemente, muitas das suas opiniões sobre a espécie humana são acertadas.
No final, Piccolino é acorrentado nas masmorras, longe do olhar da corte mas ainda parte integrante da mesma. Sempre atento. Sempre pronto a regressar.
Com uma prosa curta e muito fácil de acompanhar, O Anão é um livro que se pode ler muito depressa mas que está cheio de pontos de ponderação. Lagerkvist permite-nos várias linhas de interpretação, como o fazem os grandes escritores, mas a minha preferida será encarar este Piccolino como a nossa própria pequenina porção malvada. A parte desfigurada, quase ancestral, visceral, que sempre nos acompanhou, mantendo-se em pano de fundo, crítica, malvada. Que até podemos esconder nas nossas profundezas e ignorar durante uns tempos mas que não poderemos eliminar - afinal, faz parte de nós. E que aguarda, rancorosa, até poder regressar à superfície. Piccolino é o monstro camuflado que carregamos connosco. Temos também um bocadinho de «príncipe» cá dentro ao permitir que o mal se pratique diante dos nossos olhos - e tendo em conta o ano em que o livro foi escrito (1944) tudo isto se torna muito mais significativo.
Adorei O Anão ; é definitivamente um daqueles livros que se demarca, a léguas, dos restantes.
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