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0 O Perfume + Opinião

Esta estranha história passa-se no século XVIII e é fruto de um extraordinário trabalho de reconstituição histórica que consegue captar plenamente os ambientes da época tal como as mentalidades. 

O protagonista é um artesão especializado no ofício de perfumista, e essa arte constitui para ele - nascido no meio dos nauseabundos odores de um mercado de rua - uma alquímica busca do Absoluto. O perfume supremo será para ele uma forma de alcançar o Belo e, nessa demanda nada o detém, nem mesmo os crimes mais hediondos, que fazem dele um ser monstruoso aos nossos olhos. Jean-Baptiste Grenouille possui no entanto uma incorrupta pureza que exerce um forte fascínio sobre o leitor. 

O Perfume, publicado em 1985, de um autor então quase desconhecido, foi considerado um dos mais importantes romances da década e nunca mais deixou de ser reeditado desde então, totalizando os 4 milhões de exemplares vendi dos, só na Alemanha, e 15 milhões em países estrangeiros. Foi traduzido em 42 línguas. Este fenómeno transformou-o num dos mais importantes livros de culto de sempre. Em 2006, O Perfume passa a ser uma longa-metragem inspirada no romance de Patrick Süskind.

Autor: Patrick Süskind
Editor: Editorial Presença (2006)
Género: Romance
Páginas: 276


opinião
(5 / 5)
Nesta viagem olfactiva pela França do século XVIII, Patrick Süskind apresenta-nos Grenouille, um indivíduo de má índole, um assassino desde a nascença cujo primeiro contacto com o mundo resulta na sua primeira vítima mortal.

Realismo e fantasia misturam-se de forma maravilhosa na narrativa; Süskind junta às tristes descrições das condições em que viviam os órfãos na época, usados como aprendizes e vendidos como escravos, sem grandes esperanças para o futuro, com o “super-poder” de Grenouille, capaz de distinguir todos os odores do mundo e combiná-los com harmoniosa perfeição.

É esta primorosa capacidade perceptiva que acabará por o transformar num verdadeiro homicida, com um objectivo muito peculiar: criar o “melhor” perfume de sempre, uma essência que levasse todos os que a cheirassem a amá-lo.

Mais que isso, este jovem sociopata deseja dominar os outros partindo para isso do princípio de que o comportamento humano é regido por odores. Não lhe interessa que a única forma de produzir tal perfume seja misturando o odor de 25 belas jovens e não o incomoda nem um pouco que a única forma de obter esses mesmos odores passe por matar as raparigas... Infelizmente, o extraordinário talento de Grenouille transforma-o numa aberração, ou talvez tenha sido a sua patológica natureza que contaminou a arte em que era prodígio.

O estudo do passado de Grenouille poderia tornar a sua história triste ou até comovente, contudo, apesar de nos relatar a solidão em que Grenouille viveu toda a sua vida, como foi negligenciado e mal tratado na infância e como foi usado apenas como fonte de lucro, Süskind não nos permite realmente aproximar deste personagem. O estilo da narrativa, os capítulos curtos, o enfoque apenas nas actividades/vivências que levaram ao desejo e competência para criar "O Perfume" e a partilha da própria opinião do narrador distancia-nos de Grenouille. As suas acções são descritas com a frieza com que são executadas e, quando não mata directamente, Grenouille mata indirectamente já que todos os que se associam a ele acabam por falecer. E, embora as descrições destas mortes nos permitam apreciar o humor negro do autor, dificilmente nos levarão a empatizar com o protagonista. Fica-nos a ideia de que se trata de um ser tóxico, a própria essência do mal, prejudicando outros mesmo quando tal não é o seu objectivo.

Grenouille falha em compreender que, desconhecendo ele o amor, este não é algo com o qual a sua natureza saiba ou sequer queira lidar. Ao amor sabe apenas responder com mais ódio; despreza estes seres que se deixam levar irracionalmente sem saberem ou compreenderem o que os controla.

Desapontado com a compreensão de que, desta forma, o amor não é uma liberdade mas sim uma simples reação instintiva a compostos químicos, o seu ódio contra a humanidade apenas cresce. Este ódio já o tinha levado a isolar-se completamente do mundo, vivendo apenas com os seus sonhos e fantasias, todos eles relacionados com o cheiro. Foi a terrível descoberta de que ele próprio não tem odor que o levou a aproximar-se novamente da civilização mas que, em simultâneo, o fez afastar-se ainda mais daquilo que é ser humano.

Agora, no entanto, já nem o afastamento será suficiente, Grenouille queria aprender tudo sobre a produção de perfume e já nada lhe resta para assimilar, queria compor o melhor perfume de sempre e, tarefa concluída, nenhum outro odor há por encontrar, queria o amor das pessoas mas apenas o enoja, queria controlar quem lhe apetecesse mas agora que percebe que pode ter tudo o que quiser, que é mais deus que Deus, chega à conclusão que este mundo nada mais tem para lhe oferecer. E, se assim é, mais vale que se subtraia do mesmo.

Há muito realismo neste fantasioso mundo de odores de Patrick Süskind; o desconhecimento da humanidade em relação ao funcionamento das coisas, a sua corrupção, as falsas premissas de que partem, servindo-se de religião e ciência como base, e o desprezo e alienação dos poucos que alcançam um entendimento mais vasto são elementos bem explorados na narrativa. E, se recordar a matéria das aulas sobre neurotransmissores e hormonas - dopaminas, serotoninas, oxitocinas, cortisóis - este livro perde a sua horripilante premissa fantasiosa; o livre arbítrio que adoramos conferir ao amor não passa de pura actividade biológica.



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